Viola de 12 cordas

Hoje fui deixar minha filha na escola e, e logo na entrada, estavam duas meninas. Uma negra e uma branca. Essa "entrega" da criança na escola precisa ser rÔpida, de manhã cedo, então durou uma fração de segundo o tempo entre o momento que eu vi as meninas e toda a sequência de eventos e pensamentos que me invadiram. Me perguntei o que significava a olhada que a coleguinha negra deu para minha filha, mas não consegui identificar.
Eu pensei: "serĆ” que essa menina trata ela bem?". Minha filha Ć© animada! E saber disso me deixa apreensiva em algumas situaƧƵes porque ela pode nĆ£o encontrar animação de volta. Mas ainda bem que era cedo e sua empolgação ainda nĆ£o estava altĆssima. Ela cumprimentou a menina negra e a colega retribuiu o aceno tambĆ©m com um sorriso.
Elas eram mais velhas, minha filha tem 7 anos. A outra garota que estava ao lado perguntou sem tentar ser discreta: "você conhece ela?". A guria pretinha respondeu tão baixo que eu não entendi tudo o que ela disse, mas tinha algo depois do "conheço sim..." (Ficaremos curiosos sobre isso. Rsrs)
DaĆ eu fiquei pensando se o jeito que ela nos olhou quando entramos tinha relação com a companhia que estava com ela. Talvez ela jĆ” soubesse ali que, na presenƧa da uma colega branca, ela teria que explicar aquele "oi" ao cumprimentar uma menina negra de outra classe. Mas eu mesma sou protagonista de vĆ”rios "ois" para pais negros da escola mesmo sem conhecĆŖ-los de fato. NĆ£o sei seus nomes, nem quem sĆ£o seus filhos, mas a gente se sabe, a gente sempre se nota e āse toca" nas encruzilhadas da escola.
Talvez todo esse meu sentimento de alerta tenha sido despertado porque ontem, antes de dormir, eu comecei a ler o livro de Viola Davis, āEm busca de mimā. Eu estava esperando um preƧo dentro do meu orƧamento de dois reais e chegou o e-book numa promoção. EntĆ£o, logo no primeiro capĆtulo, Viola fala da sua experiĆŖncia traumĆ”tica no terceiro ano da escola primĆ”ria. Leiam!
Automaticamente eu fui tragada pela memória e me vi na lembrança do meu ensino fundamental. Me perguntei se isso acontece com todos que um dia foram crianças negras. SerÔ que todas buscam outras crianças negras para serem suas aliadas na infância? Eu errei na minha percepção e eu tive momentos de muita infelicidade nessa descoberta. A minha amiga "como eu" (negra) não lia a nossa relação da mesma forma.
E Ć© claro que a gente sabe que cada um tem suas afinidades e preferĆŖncias. Mas quando um irmĆ£o de cor Ć© perverso com outro, sem nenhum motivo alĆ©m da vontade de entreter uma plateia de crianƧas brancas sedentas pela humilhação centrada apenas entre os pretos, tem alguma coisa que precisa ser observada com mais atenção aĆ. E, nem sempre, hĆ” quem tenha tempo, coragem e vontade de comprar essa briga.
Eu sou uma mulher negra independente, mas isso ainda nĆ£o me faz sofrer menos quando outras pessoas pretas querem contribuir para o meu pior, gratuitamente. O objetivo delas, quase sempre, Ć© seguir sendo a Ćŗnica pessoa de cor que āsegura a pranchaā entres brancos, e esperar que talvez assim eles passem a enxergar ela como branca tambĆ©m.
A grande maioria das mulheres negras que eu conheƧo jĆ” passaram por essas experiĆŖncias de opressĆ£o e solidĆ£o no seu perĆodo escolar. Esse mesmo grupo enfrenta hoje, na fase adulta, questƵes sobre "como eu vou expressar a minha dor? Como vou pedir ajuda? Como mostrar que sou humana? Como mostrar que sou sensĆvel? Como dizer que preciso das mesmas coisas que todas as pessoas?".
Estamos movimentando nossas estruturas internas. Assim vamos reposicionar os corpos, o intelecto, as emoções e a sabedoria de mulheres negras no mundo. Então sempre que puder, acolha uma mulher preta em transformação perto de você.